quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Um conto, um apenas.


Apertada para fazer xixi, Reinalda achou um cantinho apropriado no quintal de casa. Ela brincava sozinha, como de costume, até que a bexiga chamou-a.

- Logo logo o Sol vai dormir. - ela disse enquanto olhava para as sombras das coisas, que alargavam.

Não muito depois, as coisas foram tomando seu aspecto alaranjado de ser, quase como se a infância, tão honesta e estúpida, resumisse-se em um crepúsculo. Reinalda não sabia disso e, na verdade, nem precisava saber.

A menina cujo nome horroroso fazia jus a sua criatividade, observou o percurso de seu xixi, desorganizando completamente o trabalho das formigas que passavam.

“Oh, não! Um terrível rio de ouro se formou em nossa terra! Ouro! Ahhh!!!”, interpretava. Ao invés de ajudá-las, no entanto, Reinalda divertia-se em piorar a situação. Fez uma tempestade de areia. Tão trágico, tão cênico, tão mínimo! Nada mal para um fim de tarde, não é? Fim no qual já se trançavam as primeiras notas da noite.

Voltaria para a casa agora, se a imaginação não lhe fosse inconveniente. Não criou nada, apesar disso. Deitou sobre o xixi e as formigas, matando mais dezenas destas, e fechou os olhos. Não criou nada. Não havia o que se criar. O escuro falava por si, e não de uma maneira gótica ou melosa, mas literalmente falava.

- Você é tão bonita. - disse o veludo negro, embalando o corpo de Reinalda.
- Obrigada. Nós estamos voando?
- Não.

E não estavam. Mesmo se plainassem, a menina não temia grandes alturas. De fato, nem mesmo aquela voz assexuada, penetrando seus ouvidos, causava-lhe qualquer tipo de desagrado. As crianças, personificações da coragem, sabem que existe o mal, mas jamais abandonam a experimentação das coisas. Por isso todo humano nasce artista, mesmo que o ordinário trague-o mais cedo ou mais tarde.

- Qual o seu nome? – perguntou a noite.
- Magali.

Preste atenção, porque isso é importante. O testar infantil não separa o certo e o errado da sociedade contemporânea, onde o sadismo e o desrespeito à vida, mesmo que miúdos, estão presentes na grade das primeiras informações mundanas, além de outras coisas mais. Claro que isso não exclui a inocência da programação. Mas então por que Reinalda mentiu? Não havia medo ali, isso já foi dito. A admiração pela obra de Maurício parece ser um motivo, embora não evidencie todo o conteúdo. Não. A condição de Reinalda era perfeitamente segura e, mesmo assim, ela quis ser outra porque quis variar sua existência mudando a denominação que há uns 8, quase 9 anos, lhe havia sido outorgada.

- Você tem um nome também?- indagou Magali.
- Nomes.
- Gosto de “Reinalda”.
- Então será “Reinalda” o meu nome. - ela concluiu.
- Encantada.
- (pausa) Seduzida.
- Melhor eu ir pra casa.
- Por quê?
- Porque minha mãe não quer que eu fique aqui de noite. Ela diz que é perigoso.
- O que há de tão terrível? É um momento tão ilusório.
- Ilusório?
- Mágico, Magali. Magali, é a única hora na qual o Sol adormece e a sombra dos seres podem personificar a sua imaginação. É uma hora mágica, meu amor, que tem início no entardecer.
- O que eu quiser. – entendeu.
- O que quiser. – ensinou.
- Falar inglês.
- Like no one in the world.
- Serei a mais bonita.
- De Helena será teu semblante.
- E se quiser voar?
- Voará. Com o espectro das folhas, voará. Usurpará sozinha a alma, a carne e o asfalto.
- Pra bem longe do comum, voarei.
- Unthinkable places, Magali.
- Unthinkable.

A menina convenceu-se, converteu-se. Em noite, que era menina, que era Reinalda, que era magia, confundia-se penumbra e infância. Estúpida.

- Como vou poder ir pra esses lugares, Reinalda? – questionou a criança.
- Acredito, meu amor, que é preciso ver o caminho por si mesma. – replicou o invisível.
- Mostra!
- Mostro.

Peço aos céticos que se retirem dessas letras. Freud os espera em algum outro local, com um charuto. Também estão exonerados os espiritualistas e os empregados públicos (exceto os de comissão), pois não é meu objetivo fazer qualquer testemunho fantasmagórico ou contrariar as sagradas mentes da União.
Gostaria, porém, de requisitar aos pequenos demais que não abdiquem ainda. Não sei se os ajudará saber o que houve em seguida, mas com certeza lhes concerne.

O corpo infante era denso agora, e uma sensação de perda desgastava a caixa torácica. Sentia-se aberta, as veias saltavam-lhe pulsantes. Logo amanheceria. A noite tinha pressa:
- Quero que abra os olhos, pequena.
- Mas e você?
- Abre os olhos, Magali.
- Não quero perder você.
- Eu te espero aqui se você voltar.
- Vem comigo. - disse, cerrando os olhinhos moldados em lágrima.

O escuro hesitara em responder. Não podia deixar Magali ficar, somente Reinalda. As folhas, agora apontadas para a menina, exerciam estranho papel fotossintético. Brasas alaranjadas saíam do corpo da menina e se misturavam com as primeiras notas da manhã. Havia algo de natural nisso tudo, e Reinalda não precisava saber.

- Você é tão bonita. - disse o que sobrara de sombras e frio. – Mas eu não posso ir com você.
Os sussurros desapareceram junto com os últimos vestígios da nuvem laranja, tragados pela aurora. Algo mudara. Aquelas retinas não eram infantis. Parte de Reinalda fora embora, mas não morrera. A infância não padece jamais, fica nos raios do crepúsculo, presa entre as partículas de ar, entre os insetos e o concreto.


Outras noites vieram, outras brincadeiras. O vento encarregou-se de levar embora o xixi e as formigas, afastando a memória de Magali. Ficou o nome horroroso e o medo de voar.

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